O Oceano Negro e a Metáfora de Lovecraft - by Rayana_Wolfer

Não querendo publicar um simples copy/past de todas as análises que já escrevi sobre Digimon, lanço aqui uma edição revisada. Mudei pouca coisa, mas o conteúdo de base é praticamente o mesmo.

Quando comecei a escrever este texto, eu pretendia desmistificar aquela ideia de que "Digimon 02 é inferior à 1ª temporada". Mas tenho de confessar: não foi uma atitude para convencer as outras pessoas, mas (principalmente) para me convencer a mim mesma (lol)! Fiz isso, para me re-educar. Quis dar algum crédito à temporada que me fez odiar Sorato, Yamato no universo da astronomia, Taichi como diplomata, entre outras coisas.

Quando era criança, acreditei simplesmente que esta temporada foi uma PURA estratégia comercial, para aproveitar o sucesso do primeiro anime que estreou o conceito de Digimon na televisão. Por outro lado, pertenço ao grupo de fãs que criticaram a 2ª temporada, porque os escolhidos originais deixaram de ter o protagonismo que tinham... (que paradoxo! Querer originalidade, mas ao mesmo tempo, criticá-la xD)

Mas hoje penso diferente. Depois de ponderar bem, acho que a segunda temporada vem, pelo contrário, explicar muita coisa que ficou suspensa na primeira. Claro que Adventure 02 continua tendo mais buracos do que um queijo suíço, mas talvez seja porque a preocupação dos autores não se concentrou exclusivamente no factor comercial (justamente).

Antes de lerem esta análise, eu recomendaria que assistissem ao episódio 13 que vamos falar aqui. Mas se não tiverem paciência, não faz mal, porque na verdade, as vossas perguntas só vão aumentar. Muitos fãs ficam indignados porque o mistério deste episódio NUNCA mais foi mencionado.

Mas vamos por partes! Mesmo eu costumava estranhar este episódio, e fiquei bastante contente por finalmente percebê-lo. Tudo parece confuso, porque nada parece ser obvia e directamente relacionado com a trama principal do Anime.


A Chamada de Dagomon



Comecemos pelo princípio. Este episódio não está organizado com a estrutura narrativa que é normal em digimon.
- Tudo começa em silêncio, sem diálogo nem narração, e mostra-se simplesmente a imagem de uma criatura estranha (vide a imagem acima).

As primeiras perguntas do espectador surpreendido já começam a pipocar:
- Quem é esta criatura?
- Certamente será um digimon, não?
- Tudo bem, vamos ver o episódio para descobrir as nossas respostas.

Mas a porca torce o rabo quando continuamos a ver o episódio com mais perguntas do que respostas... porque para grande frustração dos fãs, essas respostas não são tão importantes quanto as questões.


Hikari Yagami é a personagem escolhida para preencher a aura deste eisódio: a escolhida da Luz não está apenas deprimida por uma razão qualquer que desconhecemos. O sentimento dela está a ter efeitos físicos sobre ela: durante a aula, Hikari começa a ver água em toda a parte, sentindo-se mergulhada num mar até aos joelhos. Ela fica perplexa, sem saber o que está a acontecer.

Takeru está concentrado na aula, mas quando olha para ela, percebe que algo de estranho se passa... porque, como a imagem de uma televisão desintonizada, Hikari quase é transportada para outra dimensão! Claro que nenhum dele percebe isto imediatamente. Hikari só mais tarde será realmente transportada para aquele outro lugar estranho, que não é o mundo digimon... é o Oceano Negro.

Em Digimon Adventure, o Oceano Negro é uma dimensão paralela originada pelos pensamentos negativos das pessoas (nas palavras do próprio Ken, no último episódio de Adventure 02).

Ken, num acesso de maus pensamentos, e com a morte do irmão, teve acesso a este universo paralelo graças a um pequeno empurrão de Oikawa, que reconheceu nele a aura de uma criança escolhida. Mas Ken não apenas era um escolhido: veio a ser afectado pelo poder da semente das trevas, e ganhou o D-3 negro, cerca de 3 anos antes da narrativa de Zero Two tomar lugar. Tudo isto originou o nascimento do Digimon Kaiser, que veio aterrorizar a Digital World, o mundo representativo dos sonhos humanos (também dito no episódio 50).

Oceano Negro é um lugar misterioso, onde existem criaturas e objectos de natureza tenebrosa e misteriosa. Foi naquele Oceano que nasceu o modelo de digivice D-3, que o Ken adquiriu. É um digivice negro, ou seja, com propriedades maléficas ligadas àquele universo paralelo. (A Digital World simplesmente copiou o modelo D-3, e ofereceu-o às novas crianças escolhidas, para que elas pudessem lutar em igualdade contra o Digimon Kaiser)

Um dos objectos estranhos do Oceano são as Torres Negras, que possuem a função de balancear o equilíbrio entre os mundos paralelos. Não, o Digimon Kaiser não criou as Torres Negras. Elas já existiam naquele universo paralelo, e ele limitou-se a explorar o poder delas para seu benefício. Por exemplo: se as Torres forem construídas em lugares inapropriados, o equilíbrio entre as várias dimensões corre perigo, e todos os universos podem entrar em colapso (isto é explicado no episódio 34).

Quando o equilíbrio do Mundo Digital é afectado, é natural que as energias fiquem perturbadas. Isso automaticamente afecta aparelhos sensíveis como os Digivices das Crianças Escolhidas Originais. É por esta razão que Agumon e o resto dos digimons não conseguem evoluir normalmente: é por causa das energias perturbadas pelo poder do D-3 negro, na área onde as Torres Negras estão instaladas. Nem mesmo V-mon pode evoluir normalmente, junto a uma Torre Negra. Quinlongmon explica que, para superar esta dificuldade da evolução, tiveram que usar um sistema de evolução bem antigo: os Digimentals. Acho que foi apenas graças a isto que a 2ª Geração de Escolhidos teve sucesso. =P

Mas o imperador construiu imensas Torres onde não devia. Por isso, durante os episódios de Zero Two, podemos perceber que há lugares onde as dimensões estão claramente "cruzadas", motivadas pelo desequilíbrio que elas provocam. É por isso que Hikari vai parar ao Oceano Negro, no episódio 13: ela entrou num lugar onde as dimensões estavam cruzadas (igual ao episódio 31).





Referências ao autor: Howard Lovecraft


Mas para compreender o real significado deste episódio, não podemos ignorar as estratégias escolhidas pelos animadores da Toei Animation. Como eles não explicaram o episódio, cabe aos fãs descobri-lo num processo de decidiosa arqueologia. x)

O episódio dA Chamada de Dagomon possui várias pistas subliminares, que são muito importantes para perceber onde quero chegar com esta explicação.

1) A 1ª pista aparece-nos imediatamente antes do título:


Isto é um silabário inventado para a franquia Digimon.
É Digicódigo, e possui uma equivalência directa com o silabário japonês: 


É aqui que vos lanço um desafio:
- Vamos fazer uma tradução!

Pegando nas equivalências, o código pode ser descodificado para o seguinte texto em japonês:

フングルイ ムグルウナフ クトゥルウ ルルイエ ウガフナグル フタグン


O que significa?
Vamos com calma.

Se pegarmos no katakana e traduzirmos para roma-ji, esta frase pode ser lida da seguinte maneira:

fungurui muguruunafu kutooruu ruruie ugafunaguru futagun


Parece tratar-se de uma simples confusão de sons. No entanto, NÃO É. Não é uma confusão de sons à toa.
Para perceber a lógica deste código, precisam de saber três coisas:

  1. Que o silabário japonês não possui o som do "L". Eles não dizem "La, Li, Lu, Le, Lo". Eles possuem um equivalente, que se pronuncia: Ra, Ri, Ru, Re, Ro... (este "R" não deve ser lido como "RR", mas sim como se estivesse entre vogais. Leia como o "r" da palavra aRaRa.)
  2. Que o silabário japonês "come" algumas vogais, nomeadamente, a letra U. Para pronunciar a palavra FRANÇA, do modo que nós portugueses/brasileiros falamos, eles escrevem FU-RA-N-SA. Isto parece estranho quando é escrito com as nossas letras... mas quando é dito em voz alta, tem lógica.
  3. Que no alfabeto ocidental, antigamente, o som da letra "F" era escrito com "Ph".
    Se pegarem num livro velho, poderão reparar que a palavra "Farmácia", por exemplo, escrevia-se "Pharmácia" (que provém do grego pharmacon). Ou seja: "PH" = "F".


Com estas três instruções, estão munidos das ferramentas que precisam, para entender a lógica da frase do Digicódigo: fungurui muguruunafu kutooruu ruruie ugafunaguru futagun

Na verdade, isto seria traduzido para a seguinte expressão: 

Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn


LOL! Calma, e não me chamem de louca AINDA.
É normal que não saibam o que é isto. Eu disse que entenderiam a lógica... mas não ainda a frase. Ainda.

Esta frase vem de um livro chamado The Call of Cthulhu (O chamamento de Cthulhu), da autoria do norte-americano Howard Lovecraft. É uma história de terror, mistério e suspense, que sugere uma série de acontecimentos estranhos, que levarão ao fim da humanidade.

A inspiração desse livro serviu para dar um pouco de mistério ao episódio, que é um dos mais sinistros e incómodos da temporada. Esta frase, explicada no livro de Lovecraft, significa:

No seu lar em R'lyeh, o Cthulhu morto aguarda-o em sonhos


R'lyeh é uma cidade imaginária, mencionada nos livros de Lovecraft, e que está supostamente situada no Oceano Pacífico, onde uma espécie de deus desconhecido se encontra sepultado.

Cthulhu é uma espécie de representação de argila, que representa um ideal. Faz parte de um culto, associado a um rito ancestral, numa mitologia tenebrosa que afirma que no dia em que o ritual de Cthulhu for recuperado, o fim dos Homens estará próximo.

Vale esclarecer também, que o mundo criado por Lovecraft inspirou uma série de outros romances, de outros autores, que usaram a mitologia de Cthulhu para fazer alusão a uma espécie de mal adormecido, desde tempos imemoriais. Os livros criaram fenómenos sociais em todo o mundo, inclusive na Ásia, e por estranho que pareça, houve mesmo grupos que prestavam culto ao mito e acreditavam nele!

Esta mitologia possui um significado sinistro que está associado a um panteão de monstros: um grupo de criaturas horríveis veneradas como deuses, mas de origem tenebrosa. Entre eles, existe Dagon, é um dos seres "vindos das profundezas" que, segundo o author, está cedido lugar ao Cthulhu. O mais curioso é que Dagon não se trata exactamente uma invenção de Lovecraft. Ele foi realmente uma divindade adorada pelos filisteus.

Foi daqui que nasceu o nome Dagomon: a criatura que nós vimos no início deste episódio. =)

Há outro digicódigo ainda, que podemos decifrar:



Quando Hikari está sozinha na praia do Oceano, aparece um novo digicódigo. Este código é traduzido para: インスマウス, ou seja, Innsmouth.

Innsmouth é uma das cidades fictícias associadas ao mito de Cthulhu. No livro de Lovecraft, intituladoSombra sobre Innsmouth, é dito que o Cthulhu encontra-se adormecido nas profundezas do Mar, e que é venerado também por criaturas que não são humanas.

Reparem que neste episódio aparecem "digimons" não são exactamente monstros digitais. Os "Hangyomons" que aparecem neste episódio só assumem o aspecto de "digimons" enquanto estão conectados às espirais malignas, que vieram da Digital World. Mas pouco tempo depois, quando foram libertados das espirais negras do Imperador, graças à Hikari, estas criaturas mostraram o seu verdadeiro aspecto, e transformaram-se em espectros estranhos, que deixam qualquer fã, no mínimo, perturbado.



Que criaturas são estas?
Não, não são digimons. Isto ficou bem claro. Estas criaturas são referências absolutamente óbvias, explícitas, às criaturas peixe-homem (não humanas) que foram criadas por Dagon e que veneram o Cthulhu, nos livros de Lovecraft.

Estas criaturas são um mistério completo, e qualquer pessoa intui que não são amigáveis. A aura deles é estranha: falam com Hikari e afirmam que o deus deles os abandonou! Afirmam que querem Hikari para ser rainha deles. Ora, isto faz-nos ponderar: por quê que criaturas tenebrosas querem a escolhida da Luz?

Se a Luz (Hikari) for engolida pelo Chulthu (o mal), toda a esperança acaba. O Fim da Humanidade profetizado pelo mito Cthulhu seria, com efeito, uma perturbadora realidade.

Felizmente, o escolhido da Esperança (Takeru) intervém e consegue entrar no Oceano Negro, gritando o nome da amiga "Hikari", para salvar a nossa Luz/Hikari...


Considerações Finais


Percebemos aqui que o Cthulhu está associado a um mistério tenebroso. Os livros de Lovecraft insinuam que o mito está na base da criação da Humanidade, também ela sinistra e cheia de intenções perversas, enfim, com uma natureza muito obscura e incerta.

Na Humanidade, com efeito, existem problemas muito profundos, que nos levam até às maiores questões filosóficas:
- Afinal de contas, qual é a origem do Homem, ou do Universo?
- O que é o Mal, e porquê que ele existe?
- O que é a morte, e o que está para além dela?
- ...etc

São alguns dos grandes enigmas da Humanidade. Enigmas que fizeram nascer coisas como a Religião, a Filosofia, ou o Hermetismo. Enigmas que motivam os Homens na conquista da juventure eterna, ou da confortável tecnologia. Diante de grandes questões existenciais, confirmamos a intranquilidade do Ser Humano, que é uma criatura cheia de limites. O seu problema está em aceitar esse limites, ao mesmo tempo que reconhece a existência do Infinito.

Oceano Negro, na minha opinião, é uma metáfora transparente para um mundo negro que está adormecido em todos os seres humanos: isto pode até ser associado ao Inconsciente da psicanálise de Freud.
- A consciência é a pontinha do Iceberg que está visível... mas nós sabemos que a maior parte do corpo do Iceberg encontra-se submersa, debaixo de água, mergulhada dentro do Oceano e escondendo-se nas suas profundezas...

Lovecraft era um homem apaixonado pelo universo do Sonho e do Inconsciente. Realmente, ele tem razões para isso, porque o Homem é um mistério e tanto! Paradoxalmente, o mistério é uma coisa que incomoda o Homem. As trevas nem sempre estão associadas ao "MAL"... aqui, será mais legítimo associar as Trevas à Ignorância (o que, no fundo, acaba sendo a mesma coisa).

Manter a sensação de mistério terror ao longo de todo o episódio, a meu ver, faz todo o sentido. Porque a "dor", a "morte", o "mal"... tudo isso são grandes mistérios e problemas da humanidade. Aparentemente, não há como agir perante esse tipo de coisas. O ser humano incomoda-se com essa sensação de fragilidade. Não se pode dizer quem é Dagomon, sem trair esta filosofia.
O Oceano Negro representa tudo isso, tal como Ken afirma no último episódio de Zero Two, e Hikari teve que se agarrar à Esperança para não se deixar ficar "de baixa moral"...

- O que é este tal de Dagomon? De onde veio? Que ameaça ele constitui para a Hikari? Takeru poderá salvá-la?

Acho que isto poderia corresponder às seguintes perguntas:

- O que são todas estas coisas, que são um mistério? (morte, existência, mal, vida, universo, homem... o que são?)
- Que ameaça estas perguntas existenciais constituem para a nossa vida e vontade/objectivo de viver? (Hikari parecia muito deprimida, ao se confrontar com esta situação)
- A esperança/fé poderá salvar a nossa pequena luz, perdida neste grande oceano de mistérios?

Para que o ser humano não se deixe arrastar pela sensação de nihilismo, ele tem que guardar fé e esperança no futuro. Fé em algo que é divino e superior. Luz, de uma pessoa vigilante e bem humorada, animada com a vida. Quem sabe... com esta atitude, um "anjo" não lhe mostrará o caminho de volta às origens...

Um comentário:

  1. Ótimo post! Nunca havia visto por esta ótica... Tu poderia postar mais post com estas análises ^^ parabéns!

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